A cessão de direitos hereditários não possuía normas específicas no Código Civil de 1926 a fim de determinar seus requisitos e efeitos. No entanto era largamente praticada pelo mercado imobiliário para transmissão de bens imóveis, com base nas regras já positivadas para a cessão de crédito.
Tamanha era a prática de tal cessão, que o Novo Código Civil de 2002 normatizou tal costume, mediante artigo 1.793 do Código Civil, conforme abaixo transcrito:
Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.
§ 1 º Os direitos, conferidos ao herdeiro em conseqüência de substituição ou de direito de acrescer, presumem-se não abrangidos pela cessão feita anteriormente.
§ 2 º É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente.
§ 3 º Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.
Da redação do artigo, em uma simples interpretação literal, podemos concluir, logicamente, que é possível a lavratura de escritura pública para: 1) a cessão de quinhão do acervo hereditário por coerdeiro; 2) a cessão de bem singular feita por coerdeiro com autorização judicial; 3) a cessão de bem singular feita por todos os herdeiros, sem autorização judicial; 4) a cessão de bem singular feita por herdeiro único, eis que ao mesmo caberá todos os bens do espólio.
Todavia, apesar da intenção legal em somente regular a cessão de direitos hereditários já largamente utilizada, a maioria dos Registros de Títulos e Documentos passou a não lavrar a escritura pública de cessão de direitos hereditários de bem imóvel singularmente considerado, pertencente ao acervo hereditário, quando realizada apenas por coerdeiro. Também passou a vetar a lavratura de escritura para cessão de direitos hereditários de quinhão sobre bem específico por coerdeiro.
Desses impedimentos cartorários, na contramão do costume do mercado, decorreu a prática da cessão de direitos hereditários por instrumento particular, sem validade legal, diante da exigência de solenidade, disposta no art. 1.793, caput do CC.
A negativa Cartorária se fundamenta na expressão “é ineficaz” inserida nos parágrafos segundo e terceiro do artigo 1.793 do Código Civil, para vedar a realização de cessão de direitos hereditários feitas por coerdeiro de bem específico pertencente ao espólio (sem autorização judicial) ou de seu quinhão referente a bem singularmente considerado.
No entanto, a ineficácia diz respeito ao terceiro plano da escada ponteana, e não ao plano da existência ou da validade. Nesse sentido, a cessão de direitos hereditários realizada por coerdeiro dispondo sobre bem singularmente considerado atende tanto aos requisitos de existência, quais sejam: agentes (coerdeiros e cessionário), objeto (bem), forma (escrita e solene – escritura pública), vontade exteriorizada consciente/declaração de vontade, finalidade negocial e idoneidade do objeto; quanto aos requisitos de validade, quais sejam: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma adequada (escritura pública), e vontade exteriorizada conscientemente, de forma livre e desembaraçada. Consequentemente, não se trata dos casos de nulidade ou anulabilidade previstos pelos artigos 166 e 171 do Código Civil.
Ademais, o § 3º do artigo 1.793 do CC não prevê a anulabilidade ou a nulidade do negócio jurídico, na forma do artigo 166, VII ou do 171, caput, ambos do Código Civil, mas apenas a sua ineficácia enquanto perdurar a indivisibilidade do acervo hereditário, ou seja, até a partilha, conforme abaixo transcrito para melhor visualização:
§ 3º Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.
Esse é o entendimento doutrinário, trazido brilhantemente por Maria Helena Diniz1:
Também não terá eficácia a disposição, sem prévia autorização judicial de qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário considerado individualmente (p. ex., o apartamento 418 do Edificio Sol e Mar), pendente a indivisibilidade (CC, art. 1.793, § 3º do CPC, art. 992, I). Por isso, Mauro Antonini pondera que pelo § 3º do art. 1.793, ao prever a ineficácia sem a autorização judicial, será possível que a cessão se torne eficaz com ulterior autorização judicial, convalidando-a, ou, ainda, se, feita a partilha, o bem concedido venha a compor o quinhão do cedente.
Por conseguinte, a eficácia da cessão de direitos hereditários estará condicionada à partilha do acervo hereditário, tratando-se o caso de subordinação dos efeitos do negócio jurídico a evento futuro e incerto, eis que não há certeza de que o bem caberá ao coerdeiro cedente. Trata-se, portanto, de um elemento acidental do negócio jurídico, pertencente ao plano da eficácia: a condição suspensiva.
É relevante destacar, contudo, que, no parágrafo §2º, não há possibilidade de eficácia imediata da cessão, enquanto que, no § 3º do art. 1.793 do CC, há a possibilidade de produção de efeitos imediata, mediante autorização judicial.
Diante disso, é possível e necessária a lavratura da escritura pública de cessão de direitos hereditários, conforme exige o artigo 1.793, caput, do Código Civil. O que se veda aos tabeliães é a lavratura de atos inválidos, e não de atos temporariamente ineficazes, como no caso em análise, não havendo qualquer vedação aos Registros de Títulos e Documentos para lavrar escritura pública de negócio jurídico sob condição suspensiva.
Esse entendimento é o que melhor se adéqua à interpretação sistemática e teleológica das normas do Novo Código Civil, atendendo também à realidade a qual se aplica, ampliando a efetividade da norma e a utilidade para os herdeiros cedentes, fomentando o mercado imobiliário, diante da maior segurança para os cessionários.
Nesse diapasão, o Provimento 87/2022, que aprovou o novo Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Parte Extrajudicial, trouxe um capítulo próprio para a Cessão de Direitos Hereditários, do qual se extrai o seguinte dispositivo:
Art. 381. A cessão de direitos hereditários sobre bem individualizado independe de autorização judicial quando formalizada ou anuída por todos os herdeiros.
Parágrafo único. A cessão de bem a título singular, por qualquer herdeiro, pendente a indivisibilidade, deverá conter declaração de que será ineficaz perante os demais até que com ela consintam, atribuindo-se o bem cedido à cota do herdeiro cedente.
A exposição de motivos do Provimento supramencionado justifica a criação de um capítulo próprio para a cessão de direitos hereditários:
[…] apesar de expressamente previsto no Código Civil, sofria interpretação restritiva no Estado do Rio de Janeiro, em que pese se tratar de ato notarial amplamente utilizado em outros estados. Com isso, o Rio de Janeiro ficava prejudicado e deixava de contribuir à formalização de tais negócios.
Dessa forma, conclui-se que os §§ 2º e 3º do art. 1.793 do Novo Código Civil, agora confirmados pelo artigo 381 do Código de Normas da CGJ-RJ – Parte Extrajudicial, em uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, não tinha como objetivo a vedação da realização da cessão de direitos hereditários de bem singular feita por coerdeiro, mas sim de subordinar os efeitos dessa cessão ao implemento da condição de que o bem, ou parte dele, seja transmitido ao herdeiro cedente.
No entanto, é responsabilidade dos notários, na forma do parágrafo único do artigo 381 do Código de Normas da CGJ-RJ – Parte Extrajudicial, informar ao cessionário de que os efeitos do ato negocial estão condicionados à partilha, em atendimento ao dever de informação, sob pena de serem responsabilizados por danos causados ao cessionário, conforme artigo 22 da Lei 8.935/94.
Na eventualidade do evento futuro e incerto não se verificar (frustração), o negócio será resolvido, e o coerdeiro cedente ficará obrigado a restituir o valor pago antecipadamente (art. 295 e 876, ambos do CC).
MARIANA MENDES BRITO
OAB-RJ nº 179.909.
Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da 20ª Subseção da OAB-RJ;
Secretária da Comissão de Direito Ambiental da 20ª Subseção da OAB-RJ;
Pós-graduada em Direito Imobiliário pela UVA-RJ;
Pós-graduada em Direito Notarial e Registral pela UCAM-RJ;
Pós-graduada em Direito Urbanístico e Ambiental pela UCAM-RJ.
1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. Vol. 6 – 23. Ed. Reformulada – São Paulo: Saraiva, 2009. P. 85.